segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Breve lembrança da câmara de gás






Acordei acometido por repentina tosse. Repentina naquele momento, pois ela me castigava fazia mais de um mês. O gosto adocicado na boca me assustou. Era sangue.
– Tossi sangue, disse assustado à minha mulher, que dormia num colchão, na sala.
– Sangue?
– Sim. Sangue.
Tossi outras vezes,  para ver se saía sangue, mas não saiu mais nada.
– Deve ter sido um vaso que se rompeu, ela disse. Venha deitar.
– Não, já é hora de ir trabalhar.

Pegar ônibus no fim de linha é melhor. Perto de casa ele já passa muito cheio. Por isso, fui andando até o fim de linha. No meio do caminho, a tosse voltou, incontrolável, molhada. Cuspi para ver se tinha sangue. Por um momento imaginei ver uma cusparada vermelha, mas logo constatei que o cuspe era branco, ralo. Outras vezes cuspi, mas o sangue tinha ido embora.

No fim de linha a fila do ônibus era enorme e confusa. Posicionei-me atrás de uma mulher que conhecia de vista e de rabo. Impossível conhecê-la de outro jeito. Era horrível de cara, salvava-a o traseiro, que uma vez roçou-se em mim e pude sentir que era firme e quente. O sangue subiu-me à cabeça.

O ônibus chegou, mas não teve jeito, quando cruzei a borboleta, todos os bancos já estavam ocupados. Posicionei-me na frente, pois logo o carro ficaria socado. Para azar de todos nós, começou a chover.
– Fecha a janela! Gritou um passageiro que recebeu uns pingos de chuva.
– Tem que deixar um pouco aberta.
– Quer que a gente morra sufocado?
– Ainda mais a doença solando do jeito que está!
– O ar tem de circular.
– Mas não posso me molhar, posso? Respondeu o homem que recebera os pingos de chuva.
– Deixa a janela aberta, porra!
E o ônibus começou a inchar. Muitos braços levantados, como se estivéssemos sendo vistoriados pela polícia. O ar começou a faltar. Todos já suando; alguns, suores fétidos; outros, perfume forte e barato. E eu no meu canto, sufocando, oprimindo o peito para não tossir perto de alguém. Segurei o mais que pude, até que não agüentei e explodi. O catarro vermelho saiu de minha boca num jato forte e foi bater nos cabelos da mulher grávida sentada na cadeira do canto.
– Ai, que nojo! Ela disse, pegando os cabelos pelas pontas, afastando-os de si.
Eu nem pude lhe dizer nada, pedir-lhe desculpa. Só queria ar livre para poder tossir com liberdade. Mas o trânsito estava parado, chovia lá fora e todas as janelas estavam fechadas.

sábado, 21 de agosto de 2010

Alguma verdade

Não podem existir autobiografias exatas.
O homem mente sempre, quando fala de si mesmo. (Heine)

Hoje descobri que sou um covarde. Não desses covardes que tremem de medo e que enfiam o rabo entre as pernas. Sou um covarde que treme, isso sim, mas tremo de emoção, tamanha a potência de minha covardia. Tremo só de pensar nas coisas que quero possuir, mas que me são distantes, em verdade, inalcançáveis. Ora, mas por quê? Pergunto-me em tom de censura. Então será que sou um rato? Pior que isso, pior que isso, meu Deus. Um rato, sim, um rato ao menos é audacioso, pega o que quer e foge. É um herói. Tem a coragem de dar as caras. E eu? Veja só isso, Leila, nem mesmo tenho a coragem de mostrar a cara, a verdadeira. Sabe meu nome? Claro que não, se sou Centelhas do Outro. Ora, mas veja que até mesmo o Outro, a fonte de onde escorre tanta covardia, não passa de um covarde de marca maior. Usa-me, o traste. Expõe-me ao ridículo. Faz-me escrever tolices, faz-me acreditar que o sopro de sua palavra tem valor, na esperança de ouvir o ouro falso, tudo para que seu ego engorde. Um tolo. Que quer o artista? Sim, caíamos na real. O que quero Eu, Eu, Eu, o escritor? Ah! Quero holofotes. Quero bajulação. Quero reconhecimento. Quero fama. Quero a palavra forte, aquela que tem peso, mesmo que o que eu diga seja a maior asneira. Ora, ora, ora, isso acontece muito por aqui. Qual o seu processo de construção do texto? Bem, bem, vai respondendo o escritorzinho, como se o ato de escrever estivesse sob o domínio da razão. Ele não percebe os mil demônios, e pensa que cria personagens, quando, em verdade, são os demônios de si, brotando do escuro da memória. Ah, mas isso é só ficção, realidade é outra coisa, ele diz. É um tolo a levantar fronteiras. Pensa que manipula... Olhe para mim, Leila, arranca-me daqui, destrua-me, se for capaz, pois estou cansado de ser personagem do Outro. Preciso ser Eu, Eu, Eu. E ter a coragem de dizer que te amo. Mas, como pode ver, sou um covarde. Se ao menos eu fosse um rato, roubaria o seu amor... Sim. Sim.

domingo, 15 de agosto de 2010

O iceberg



Desperta-me a voz de Leila, sempre rouca do cigarro e da bebida. Abro os olhos e não a vejo. Fecho os olhos e ela me aparece com sua risada.
– Sim, meus peitos são grandes e agora são seus.
– Claro que são meus, respondo-lhe, crente que Leila será minha para sempre.
– Nunca diga “para sempre”. Isso me soa romântico.
– Quero dizer “até a nossa morte”, conserto.
– Nem mesmo isso, ela diz, incisiva.
Enquanto Leila me mostra os seus peitos e sorri despudorada, eu a vejo afastar-se de mim, crescendo enormemente.
Ao longe, ouço a voz rouca de Leila. Leila bem aqui dentro de mim, cantando e dançando rumba no meu peito.

Cansado, fecho o Word. Vou à varanda. Deslumbra-me o nascer do sol. Distante, nuvens avermelhadas desenham formas incríveis no céu. Formas acesas, indefinidas. Forço a imaginação, na tentativa de fazer Leila retornar. Concluo que estou mesmo muito cansado, nenhuma fantasia mais ou menos ordenada e com sentido me ocorre. Decido dormir. Ao virar-me na direção da sala, vejo Leonora, minha mulher, parada no meio da sala, a me observar. Ela sabe do meu esforço para escrever, de toda a dificuldade que venho tendo para elaborar o mínimo texto. Na nossa antiga residência não havia esse problema. Tudo começou depois que nos mudamos para esta casa.
– Então, ela pergunta.
– Escrevi algo sem sentido. Gastei horas... a história não se encaixa...não tem sentido...
– Ora, meu bem, não diga isso. Nem sempre o sentido do texto pertence a quem o escreve. Vamos dormir, vem, olhe só para você, parece tão cansado...
– Vamos, vamos, Le... Leonora, meu bem.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Suave veneno

Alfredo acorda quando Luana Piovani grita com Rodrigo Santoro.
Luana Piovani – Não quero mais nada com você. Você transou com a minha mãe.
Rodrigo Santoro – Mas eu não sabia que era sua mãe, e... Mas que droga! Eu não transei com sua mãe. Eu amo você.
Luana Piovani – Vá embora. Saia daqui. Deixe-me em paz.
Alfredo abre um olho e fica assistindo Suave Veneno. Ele está só de cueca, estirado no sofá. Letícia, sua mulher, sentada na beirinha, enrijece o corpo ao perceber que ele está acordado. Dá comercial e ela se levanta. Não diz uma palavra. Entra no banheiro e senta-se no vaso.
Letícia – (falando baixinho ao leitor) Sempre que entro no banheiro, a pretexto de urinar, dou descarga. Não quero que ele pense que entro no banheiro porque estamos brigados, somente para me isolar. Às vezes rasgo o papel higiênico, abro e bato a tampa do balde de lixo com força e depois lavo as mãos. Tudo isso para justificar uma simples mijada que, em verdade, nem dou. Ouça: é o plim plim. Agora, puxo a cordinha da descarga, rasgo o papel higiênico, abro o balde de lixo e bato a tampa com força, lavo as mãos e saio. Sou toda indiferença. Pego uma cadeira e me sento. Uso de estratégia ao colocar a cadeira do lado de sua cabeça. Daqui, posso vê-lo, e, o que é melhor, não sou vista”
Alfredo não se levanta logo. Dá um tempo, para mostrar-lhe que, mesmo sendo observado, está à vontade.
Rodrigo Santoro – Precisamos conversar.
Letícia – “Não quero conversa com você.”
Luana Piovani – Já conversamos tudo o que tínhamos para conversar (e dá-lhe as costas).
Alfredo – Está retada comigo.
Rodrigo Santoro – Não pode ser assim. Não pode ser assim. Você precisa me dar uma chance. Eu amo você.
Rodrigo Santoro tenta abraçá-la, por trás.
Luana Piovani – Não! Por favor, não! Vá embora! Vá embora! (e enfia as mãos nos cabelos, desesperada).
Letícia – “Cachaceiro sem-vergonha”
Rodrigo Santoro saí. O rosto de Luana Piovani aparece em close. Uma lágrima escorre pela face.

Coragem de Hemingway

Meus prazeres morreram. Tento lembrá-los. Veem-me à memória corpos pálidos, sorrisos tristes.`
"É o diabo! Que pode desejar um homem no fim da vida?"
Pergunto-me isto e me ocorre que, neste momento, velhos, jovens e crianças estão morrendo, sem nenhum tipo de distinção.
"A morte não é o problema. O problema é esta vida, que me arrasta lentamente para o buraco. Se ao menos eu pudesse reagir. Procuraria o quê? Deitar-me-ia nos braços de moça? Beijaria boca de senhora dama? Procuraria trabalho decente? - sou escritor. Nada. Nada me incita a viver. Ó, como queria ser Hemingway! Ter a coragem covarde de Hemingway. E estourar a bolha.

Magritte

Corte

Tudo são trevas. Isto porque me cortaram a luz. Não, não se trata de metáfora. O homem da companhia veio e cortou. Não pediu licença. Pareceu-lhe direito cortar-me a luz. E ele o fez, sem saber que me preparava a cama. A escuridão agora me acolhe. Ela é minha amiga.

Foto retirada do site http://www.soumetamorfico.comli.com/

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Sanidade

Minha vida resume-se a andar. A casa, sempre fechada. De dia, sempre na penumbra; à noite, trevas. Todo o tempo a andar pela casa. Enquanto ando, pensamentos surgem-me rápidos e, no mesmo instante, se vão. Aporrinham-me estas lembranças. Rostos inteiros me aparecem, expressivos. Outras vezes, apenas os olhos de mulher, que me espiam. Afasto essas aparições. Em vão. Tento manter-me lúcido e segurar o juízo. Digo em voz alta que estou enlouquecendo. Às vezes concordo que minha sanidade depende de eu aceitar minha loucura.
- Sim, sou louco. Louco. Louco. Negar esta verdade me tornaria um homem realmente doente.

Foto retirada do site www lucynovaes-minhaalmanua.blogspot.com

Musa

Abro o caderno. Escrevo duas, três linhas e logo Ela me aparece. Agacha-se e molha a página; depois, deita-se no lençol branco, toda arreganhada, e diz:
- Decifra-me, ou devoro-te.

Foto retirada do site http://www.poetisaamarilis.blogspot.com/