sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Clotch!


Quantas são as pessoas vergonhosas neste mundo, meu Deus! Quantas são as que, aceitando por obrigação um convite, vão almoçar em restaurante, na presença de outras pessoas que, parecem, têm o costume de ficar observando cada mastigação do outro comensal. Não se sentem então aquelas pessoinhas engolidas pelos olhares glutões, olhares de homens despojados e barrigudos, homens que, fingindo o menor desinteresse, insistem em nos humilhar com suas superiores qualidades de descontração? E as mulheres! Ah, estas são inimitáveis. Sentam-se eretas – é-lhes necessário posicionar-se assim – e com a mais descarada elegância do mundo põem-se a emitir risinhos oculares que, em tudo, já evidencia o deboche e a superioridade.
Quantas são enfim as pessoas que, após sair do restaurante, chegando em casa não se põem ligeiro a encher um suculento prato? E como é bonito juntar a fome à vontade de comer! E como se lambuzam e são ruidosos! Que importam os ruídos da maceração, se estes proporcionam um prazer acrescentado também ao ouvido? Sim, o ouvido é também um órgão do prazer degustativo. Percebe-se mais nitidamente este pormenor quando se morde a maçã e ela faz clotch! Porém toda a descontração no comer desvanece com a etiqueta.
“Não, não, não é assim que se segura o garfo, meu filho. Preste atenção, este copo aqui é para água, este outro para suco. Com esta mão você segura o garfo e com a outra, a faca. Não, não, meu filho, não se deve colocar os cotovelos sobre a mesa. A sopa deve ser tomada sem fazer ruído” – dizem que no Japão isto é muito contra as regras à mesa. Deve-se, sim, tomá-la fazendo biquinho e acompanhar a sucção com bons e audíveis hiisssc!
Agora, vejam vocês que, após haver ceado, põe-se o menino a importunar a mãe, coisa que ela jamais poderia compreender, com insistentes: estou com fome, mamãe! Estou com fome, mamãe! Ainda estou com fome, mamãe!
“O que há com você, meu filho? – pergunta a mãe, já pensando estar o seu principezinho empestado de lombrigas – então não já comeu?
“Comi, responde o inocente, quase já chorando, mas, mamãezinha, morro de fome. Posso pegar uma fruta?
A mãe, piedosa como todas as mães, concede a extravagância, que o menino, faminto, a devora com ruídos e lambuzações incompreensíveis a toda e qualquer regra.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O espelho



     O sono que tive não foi reparador, ao contrário, levantei-me bem cedo, quando não havia sol e as luzes dos postes ainda se encontravam acesas. Não pude compreender como dormira tanto, sim, pois desde às 7 horas do dia anterior que eu dormia. No entanto, tinha o corpo quebrado, como se acabasse de chegar em casa de madrugada, voltando de uma festa, onde minhas energias tivessem se exaurido. Apesar do cansaço e do mal-estar, seria impossível deitar e dormir de novo. Portanto, decidido, fui ao banheiro e lavei apenas o rosto. Fazia frio, condição pouco estimulante para banho. Escovei os dentes e, enquanto fazia isso, olhava meu rosto num pequeno espelho quadrado de bordas alaranjadas, pendurado na parede, logo acima da pia. Vi um rosto sem expressão, marcado por olheiras escuras e um olhar apagado.  “Deus do céu! assustei-me. Mas que aparência horrível! Como pode alguém se apresentar com essa cara?” Fiquei uns dez minutos olhando aquela expressão apática, até que meus olhos mergulharam-se uns nos outros e, como se uma nuvem pairasse entre mim e o espelho, ofuscando tudo, subitamente não vi mais meu rosto.
Ouvi batidas na porta. Agora podia ver mais uma vez meu rosto no espelho, meu nariz, e meus olhos assombreados por profundas olheiras.
Enquanto atravessava a sala, olhei o relógio e me censurei por ainda não ter saído. E, mesmo sabendo ser toda minha a culpa por ainda estar ali no quarto, recriminei quem batia à porta com tanta insistência, cuja presença só me aborreceria ainda mais. 
“Era só o que faltava! Sempre é assim. E agora não pode ser diferente.”
     Teria sido bom recompor-me, enfiar-me me algum estado de espírito que mostrasse realmente quem eu era. Mas nem pensei isso, tão rápido abri a porta e, quando vi, tinha em minha frente um raio de moça.
Com uma bandeja apoiada na mão esquerda e a direita erguida ainda em posição de bater, a moça não pôde controlar o impulso do murro que já dava na porta e, desajeitada, teve o corpo lançado à frente, esbarrando-o no meu. O murro passou-me zunindo na orelha esquerda. A bandeja, suspensa por uma reação automática dos músculos do braço, foi lançada para trás, o que provocou certo estardalhaço ao cair no chão.
Parados. Ficamos assim, assustados, um olhando a cara do outro.
“Que lindos e grandes olhos castanhos! Que boca! Que testa! E os cabelos! Ah, nada disso, testa pequena e bem feita; olhos realmente castanhos, mas não grandes, profundos, cansados, porém com intenso brilho e força, sob eles enormes olheiras enegrecidas, as quais contrastavam com a pele alva. Faltou o quê? Ah, a boca, não era carnuda, nem tampouco fina, regular, diria, não obstante rosada, de lábios firmes e, permita-me um deleite: frutinhas frescas. Os cabelos? Não sei, desalinhados...; nariz graciosamente arrebitado e, a respiração... bufos de égua em trote, bafejos expelidos de vulcão: um gozo...
E fala! (Que pena! Afastou-se um pouco de mim. percebe como eu estava um cretino?) vamos aos cumprimentos. 
 Bom dia, senhor, vim trazer o café. Nádia. Meu nome é Nádia – e estendeu-me a pequena mão.
– Centelhas – apertei a sua com firmeza.
– Ai – gemeu, franzindo o cenho e o nariz, apertando os olhos e elevando um pouco o lábios superior.

Uma rosa vermelha,
com suas múltiplas reentrâncias, ensaiando,
no sofrer do nascimento,
o desabrochar.

(Agora era o lado poeta). Dois dentes destacavam-se bem no meio de outros que se seguiam perfilados. 
“Que boca! Que fome de beijá-la!”
Contive-me, aspirando fundo.
Antes de falar outra coisa, limitei-me a olhar as horas.
 Queira me desculpar, senhor, devia ter vindo mais cedo, mas minha mãe, ela sofre de asma, passou muito mal essa noite, e a farmácia não abre antes das oito, especialmente nos dias de hoje abre ainda mais tarde, como se não fosse possível a alguém ficar acometido por algum mal justamente por hoje ser o dia que é. Tive que esperar abrir, comprar o remédio e voltar correndo em casa e medicar minha mãe, só aí então pude vir ao hotel e preparar o café dos hóspedes.
Você já serviu os outros hóspedes? perguntei-lhe, muito sério.
Oh, não, senhor, vim trazer primeiro o seu café. O senhor é novo por aqui e nem me conhece, não sabe que tenho uma mãe doente. Os outros hóspedes são todos conhecidos, eles vão entender se me atrasar. Acontece, às vezes, de eu nem precisar me explicar ou pedir desculpa pelo atraso, eles, muito cônscios que estão do estado de minha pobre mãezinha, simplesmente sorriem muito docilmente, como se me confortassem por ter uma vida difícil. Nessas horas me sinto feliz.
A moça me deixou desarmado. Usou um argumento estranho para me deslocar. “Diabos! Eu só queria recriminá-la, como faz um verdadeiro chefe.” Então, muito ligeiro e docilmente, perguntei-lhe se podia esperar um pouco, enquanto eu via uma coisa lá dentro. Na pressa com que tomei a decisão, bati a porta na sua cara e, rápido, corri até ao banheiro e parei em frente ao espelho. Tentei lembrar uma cara que fiz um dia, quando eu nem notei que Leonora, minha esposa, me olhava. Só depois que eu a vi, foi que ela disse:
  Você estava com uma cara tão boa.
Boa como? perguntei-lhe.
Ah! Você parecia estar livre dos problemas do mundo.
Depois que Leonora me disse isso, assim que pude corri ao espelho e tentei decorar aquela cara. Julguei que fosse uma cara simpática. Mas, dias depois, como eu insistisse em usá-la continuamente, a cara virou máscara, uma caricatura de mim. E, o efeito desastroso de usar uma máscara foi, um dia, Vera vir muito dolorosamente me dizer das suas dores de cólica e eu, inocente, mostrar-lhe uma cara simpática.
   Você parece um bobo com essa cara, disse ela na sua dor.
A partir daí fiquei incerto se devia ou não usar aquela cara simpática. E não foi só isso, de certa forma a máscara grudou na minha memória, e de vez em quando ela vinha, insistente, querendo cobrir minha cara natural, que é a triste. Passei a ter outra personalidade, uma intrusa, uma indesejável.
E agora, ali no quarto do hotel, tentava lembrar com a máxima fidelidade aquela cara simpática, mesmo com a forte suspeita de que, tão logo eu a usasse, sobreviria a esse ato um grande e avassalador mal-estar. Peguei-a e vesti-a. Voltei correndo à sala e abri a porta. A moça não estava mais lá.
Aproximei-me da amurada do corredor e ouvi uma voz de homem gritando com alguém, lá embaixo. Desci para ver o que estava acontecendo.
 É mesmo impossível se tolerar coisas desse tipo, gritava senhor Moreiras, o proprietário do hotel, com a moça do café. E continuou: não se pode dar um dedo, a mão, e logo nos tomam o braço, o corpo, tudo, tudo; confundem tudo, liberdade com permissividade, cordialidade com amizade. E agora, e agora, mocinha, é capaz de ver a situação real? Olhe para mim. O que vê? Um liberal? Um amigo? Um cordial? Vamos, diga, o que vê? Ah, não diz nada! Pois bem, quem cala consente. E é justamente aí que está a burrice, poderia responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá.” Mas fica calada, sem argumento, nem ao menos pôde me responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá,” Hum.
  Mas foi justamente o que fiz, senhor? disse a mocinha, muito recolhida em si.
 Quê?! Mas como ousa desafiar-me? Ah! logo vi, pertence àqueles tipos dissimulados! Espera que afrouxemos o laço e nos dá o bote.
Aproximei-me dos dois. Senhor Moreiras sorriu. A moça do café procurou recompor-se rápido e também sorriu. Fiquei tão envolvido com os gritos de senhor Moreiras que esqueci a máscara simpática. Portava agora tão somente a cara da alma.
– Vê, senhor... senhor..., dirigia-se ele a mim.
 Centelhas.
 Veja bem, senhor Centelhas, bonito nome, esta é Nádia, a moça do café. Repare bem, repare bem, se não o acordamos mais cedo é porque hoje é domingo; dorme-se até mais tarde aos domingos. O senhor dormiu bem? Ah, vê-se que dormiu, olhe só que cara esperta! Um passeio pela baía vai lhe fazer muito bem. Os manguezais são lindos, dizem, eu não acho, mas já que dizem, são realmente muito lindos. Tenho um barco a motor, eu mesmo posso levá-lo, seria um prazer. O senhor tem fome? Quer provar um pedaço de requeijão? Vou pegar.
O homem se apressou em ir pegar o requeijão.
A sós com Nádia, perguntei-lhe se aquele dia era realmente domingo. Ela respondeu:
 Oh, sim, hoje é realmente domingo. Poucos estabelecimentos estão abertos. Por isso esse silêncio. Não há o que se fazer domingo neste lugar. O senhor gostaria de passear pela baía?
 Oh, não, respondi, imitando-a na fala e no gesto expressivo que colocava no rosto quando falava assim.
 Ah, o senhor está me imitando, reclamou.
Nádia era de uma docilidade incrível. Via-a como uma filha amada. Ao refletir em mim tal pensamento, fui tocado por tamanha felicidade que me senti incapaz de sentir ódio. Sorri para ela. E o olhar que ela me retribuiu tocou tão fundo meu coração que quase deixei cair uma lágrima.
     Oh, não queiram os senhores imaginar o que aconteceu no dia seguinte!... 

sábado, 11 de setembro de 2010

Sinal vermelho

Entre carros que passam nervosos, eles se veem, cada um em um lado da rua. Na outra pista, na frente dos carros, o malabarista pintado de palhaço. Bolas azuis, vermelhas e brancas sobem e descem, acomodando-se na mão do artista, que as acolhe na mais segura cumplicidade. Ambos são íntimos: bolas e mãos. O vento vem do Atlântico e sopra as folhas das árvores. O letreiro da vídeo locadora balança. As bolinhas do malabarista são forçadas a atônito desequilíbrio, mas as mãos do homem, franzino e colorido, as protege do estardalhaço de uma queda. Aliviado, ele as guarda nos grandes bolsos do seu macacão vermelho e amarelo. Sorri para os carros à sua frente, na esperança de receber uma moeda. Pela pequena fresta do vidro surge, feito mágica, uma moeda de 50 centavos. O palhaço faz um gracejo, acompanhado de largo sorriso. O vermelho dá lugar ao verde. O malabarista corre para a outra pista, posiciona-se na frente dos carros e o show recomeça. Os cabelos dela esvoaçam. Em vão tenta fazer um coque na nuca. – Mas que vento! ela diz. Aspira fundo e sente no ar o cheiro que vem da praia. Entre o passar veloz dos carros, ele a vê, surgindo e desaparecendo. O seu filme é ela, no quadro a quadro de uma película defeituosa: levantando o braço direito; a mão esquerda indo à cabeça; o rosto displicente, de perfil, voltado para a igreja. E, no virar para a frente, ele a vê toda. Vê o seu olhar traçando um caminho que passa por ele, arrastando-o. Lembra-se de quando era menino e matava os vaga-lumes. Imobilizáva-os  no chão, pisava-os com força e traçava um rastro de luz verde sob seu pé, que aos poucos ia se apagando. – O seu olhar é uma estrada de luz, ele pensou. Sentindo os lábios ressequidos pelo sal que vem do mar, ela molha-os com a língua. Agora, seus lábios estão desertos. Estranhos passam por eles. Meninos que cheiram cola na praça se aproximam dela. Ele se preocupa, mas só. Ela agora é terra distante. – Sai daí! Sai daí! ele quase grita, em silêncio. Sem pensar, seu braço afugenta pássaro: xô, xô, sai daí! Recolhe o braço e a insensatez. Ela vê o letreiro abóbora da agência bancária se acender. As luzes na praça se acendem. A fonte luminosa esguicha água em jatos coordenados, acompanhando o ritmo da música. Na esquina da calçada onde ele está, pessoas se aglomeram em redor do carrinho de cachorro quente. Pessoas começam a chegar para o teatro. O movimento fica intenso. Pessoas indo e vindo, desencontrando-se indiferentes. – Mas que interessante! dizem ao mesmo tempo, voltando os olhos para a igreja, que começa a tocar a Ave Maria no badalar do sino. E se olham tranqüilos, duas crianças que compartilham a novidade, já esquecidas da briga. Mas logo o badalar final desfaz os sorrisos. Paira entre ambos mais que o rígido metal dos veículos, que passam ligeiros. No meio da pista, no final do show do palhaço, quando as bolas sobem e descem, um breve desequilíbrio, e elas caem. – Óóó! quase se ouve no íntimo de cada espectador. – Lamento muito, meu amor, ele diz. – Fechado! dizem, e avançam decididos. Cruzam a rua. Passam lado a lado, mas nada se dizem, não se esbarram, nem mesmo se olham.

domingo, 5 de setembro de 2010

Operação duplo J

Eu disse, pare o carro, quero vomitar.
Minha mulher parou o carro, abri a porta rápido e vomitei na rua.
– Pronto, agora podemos ir, eu lhe disse.
– O queixo está melado.
Logo adiante ela parou o carro de novo e vomitei.
– Aguenta chegar até o hospital, agora?
Não lhe respondi nada. Enxuguei a boca com o dorso da mão. A dor voltou mais forte.
No hospital, enquanto minha mulher falava com a atendente, fui correndo ao sanitário. A dor estava insuportável. Vontade de mijar e fazer cocô, as duas vontades ao mesmo tempo. Folguei a calça com cuidado, abaixei um pouco a cueca e tirei o monte de papel ensopado de urina. Sentei-me no vaso e tentei primeiro mijar, mas a cabeça de minha pica estava doendo e o canal ardia muito. Levantei-me, pois não conseguiria mijar sentado, feito mulher. Apoiei a mão esquerda na parede em frente e com a direita segurei o pau. O coitado estava mole, muito mole. Tentei um primeiro jato, com cuidado. Senti a urina passar rasgando o canal. Mesmo assim continuei forçando e mijando, até que a vontade passasse. Senti que parei de urinar, mas a vontade continuava. Olhei para baixo e vi o vaso vermelho de sangue. Talvez agora eu fizesse cocô. Sentei-me no vaso e apertei a barriga com as mãos, na tentativa de segurar a dor. Dobrei-me todo, sentado no vaso, mas a posição me pareceu propícia para vomitar. Oh, como seria bom vomitar tudo e expulsar a dor de vez! Mas não tinha mais nada para vomitar, apenas a vontade. Como não conseguia fazer mais nada, levantei-me, desenrolei um monte de papel higiênico, deixei-o no formato de absorvente e coloquei-o sob os ovos e o pau. Ajeitei a roupa e saí.
– A dor passou? perguntou minha mulher.
– Não.
– Você tem que dizer que está se mijando sem controle; diga que a dor continua; que não é normal ficar se mijando; diga que não pode ir à faculdade, porque está se mijando; que ele veja o que está errado. Diga-lhe tudo, ouviu?
Não disse nada à minha mulher, só queria que o médico me atendesse logo e me pusesse para dormir. E, quando eu acordasse, estivesse sem nenhuma dor. Mas nem o médico me atendia nem a dor passava. Isso levou mais de uma hora, quando, até que enfim, chamaram meu nome.
– Então, o que está sentindo? o médico, que não era doutor Araújo que havia me operado, perguntou, simpático.
– Faz três dias que estou urinando sem controle. Ontem mesmo, na faculdade, foi um horror, toda hora no banheiro, para colocar papel. Eu acho que isso não é...
Olhando meu prontuário, ele falou:
– Você colocou o duplo J. Não era para isso estar acontecendo. Você não mexeu, puxou o cordão?
Eu havia tirado uma pedra do rim direito. Para isto, doutor Araújo achou melhor “pescá-la” – esse foi o termo que ele deu para a operação – através de uma sonda colocada no canal urinário, depois colocaria um aparelhinho chamado “duplo J” e depois era só puxá-lo com o cordãozinho que estava com a ponta para o lado de fora.
– Não senhor, doutor, mas a enfermeira, quando eu ainda estava aqui no quarto do hospital, sentou-se na beira da cama e não viu que se sentou em cima da sonda, deve ter mexido o aparelho lá dentro. Ardeu como quê. Deve ser por isso que estou me mijando.
– É, o aparelho deve ter saído do lugar, disse o médico.
Após ter constatado que o duplo J havia mesmo saído do lugar, o doutor disse que iria tentar posicioná-lo.
– Onde está doutor Araújo, perguntei-lhe.
– Não se preocupe, ele respondeu, o procedimento é simples. E me explicou: vamos tentar colocar a sonda e...
– Sem anestesia? perguntei-lhe, já apavorado.
– Não. Não. Vamos aplicar um tubo de Xilocaína no canal urinário e tentar colocar o duplo J no lugar.
“Um tubo de Xilocaína!”, pensei, apavorado
– E eu vou continuar me urinando?
– Não. Não. Tudo volta ao normal. Entre naquela salinha e tire a roupa. Vista o roupão com a parte aberta para a frente.
Deitei-me na cama. O médico e mais dois novatos que nem ele, examinavam-me o pau, meio perdidos, sem saber ao certo o que fazer.
Eu deveria ter saído correndo, gritado por socorro, deveria ter agredido aqueles filhos da puta que queriam estuprar o meu pau. Mas não, eu só queria me ver livre da dor, eu só queria parar de me urinar sem controle. Por isso não resisti e consenti que eles me violassem daquela forma.
O meu corpo nu, entregue. Senti o líquido frio penetrar-me. Cerrei os lábios. Eu não sabia se sentia dor. Eu sentia uma coisa maior que dor. Eu me senti violado, agredido física e moralmente. Depois senti uma coisa dura sendo enfiada. Era a sonda, um tubo grosso, grosso demais para o canal de uma pica. Não disse nada, apenas cerrei os lábios e suportei a invasão.
– Pronto, disse o médico, não ia adiantar colocar o duplo J no lugar. Retiramos.
Eles não sabiam o que fazer! concluí na hora, mas nada lhes disse a esse respeito. Eu só queria sair dali. E foi o que eu fiz.
Mas antes, ainda na recepção do hospital, abracei minha mulher e, sem que pudesse me controlar, chorei muito, e muito e tão alto a ponto de uma senhora que estava perto aproximar-se e perguntar à minha mulher:
– Ele perdeu alguém?

               A aula de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt
               
               Ofereço este conto a Gerana Damulakis, 
               Ângela Vilma e a Bípede Falante.