Entre carros que passam nervosos, eles se veem, cada um em um lado da rua. Na outra pista, na frente dos carros, o malabarista pintado de palhaço. Bolas azuis, vermelhas e brancas sobem e descem, acomodando-se na mão do artista, que as acolhe na mais segura cumplicidade. Ambos são íntimos: bolas e mãos. O vento vem do Atlântico e sopra as folhas das árvores. O letreiro da vídeo locadora balança. As bolinhas do malabarista são forçadas a atônito desequilíbrio, mas as mãos do homem, franzino e colorido, as protege do estardalhaço de uma queda. Aliviado, ele as guarda nos grandes bolsos do seu macacão vermelho e amarelo. Sorri para os carros à sua frente, na esperança de receber uma moeda. Pela pequena fresta do vidro surge, feito mágica, uma moeda de 50 centavos. O palhaço faz um gracejo, acompanhado de largo sorriso. O vermelho dá lugar ao verde. O malabarista corre para a outra pista, posiciona-se na frente dos carros e o show recomeça. Os cabelos dela esvoaçam. Em vão tenta fazer um coque na nuca. – Mas que vento! ela diz. Aspira fundo e sente no ar o cheiro que vem da praia. Entre o passar veloz dos carros, ele a vê, surgindo e desaparecendo. O seu filme é ela, no quadro a quadro de uma película defeituosa: levantando o braço direito; a mão esquerda indo à cabeça; o rosto displicente, de perfil, voltado para a igreja. E, no virar para a frente, ele a vê toda. Vê o seu olhar traçando um caminho que passa por ele, arrastando-o. Lembra-se de quando era menino e matava os vaga-lumes. Imobilizáva-os no chão, pisava-os com força e traçava um rastro de luz verde sob seu pé, que aos poucos ia se apagando. – O seu olhar é uma estrada de luz, ele pensou. Sentindo os lábios ressequidos pelo sal que vem do mar, ela molha-os com a língua. Agora, seus lábios estão desertos. Estranhos passam por eles. Meninos que cheiram cola na praça se aproximam dela. Ele se preocupa, mas só. Ela agora é terra distante. – Sai daí! Sai daí! ele quase grita, em silêncio. Sem pensar, seu braço afugenta pássaro: xô, xô, sai daí! Recolhe o braço e a insensatez. Ela vê o letreiro abóbora da agência bancária se acender. As luzes na praça se acendem. A fonte luminosa esguicha água em jatos coordenados, acompanhando o ritmo da música. Na esquina da calçada onde ele está, pessoas se aglomeram em redor do carrinho de cachorro quente. Pessoas começam a chegar para o teatro. O movimento fica intenso. Pessoas indo e vindo, desencontrando-se indiferentes. – Mas que interessante! dizem ao mesmo tempo, voltando os olhos para a igreja, que começa a tocar a Ave Maria no badalar do sino. E se olham tranqüilos, duas crianças que compartilham a novidade, já esquecidas da briga. Mas logo o badalar final desfaz os sorrisos. Paira entre ambos mais que o rígido metal dos veículos, que passam ligeiros. No meio da pista, no final do show do palhaço, quando as bolas sobem e descem, um breve desequilíbrio, e elas caem. – Óóó! quase se ouve no íntimo de cada espectador. – Lamento muito, meu amor, ele diz. – Fechado! dizem, e avançam decididos. Cruzam a rua. Passam lado a lado, mas nada se dizem, não se esbarram, nem mesmo se olham.
Uma sensação que já tive, de estar cruzando com alguém "mágico" que eu deixo de ver pelo meu excesso de realidade.
ResponderExcluirMuito bacana!! Gostei!! :)
bj.
Excelente! Passa uma coisa indizível.
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