sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O ruminante

Meu Deus, há quanto tempo eu não dormia! Desde que iniciei a viagem não preguei os olhos. Quanto a não ter dormido e nem mesmo sentir sono, tudo bem, o que não podiam era me deixar com fome todo esse tempo. O estômago já reclamava, e Nádia tomara todo o café, não deixara uma migalha de pão. “Bem”, ponderei, “logo amanheceria e um bom repasto forrar-me-ia o estômago.”
Olhei-a deitada, virada para cima, a mão direita sobre o peito, a boca meio aberta; ressonava.
Distração! Pura distração! A quem queria eu enganar?! Tudo conversa isso de fome e falta de sono, tinha mesmo era desejo! Desejava a menina deitada em minha cama. Caso houvesse cordas no quarto, amarrar-me-ia até que o dia amanhecesse e fosse ela embora. Mas nada vi que me pudesse deter. Aproximei-me da cama e sobre a boca de Nádia coloquei a minha bem aberta, assim por cima, sem tocar na dela. Ela ressonava, respirava e saia um ar quente, hálito de frutas fermentadas. Engoli faminto o ar, a vida que por aquela boca saía. Eu tinha fome e achei justo tomar-lhe um pouco de ar. Se comera toda a minha comida...
Houve momentos em que sua respiração quase parou, o faminto, por sua vez, uma mente criativa e brilhante, imaginando que  a menina morria por falta de ar, aproximou bem a sua boca à dela, mas sem tocar, e assoprou lá dentro do peito boas lufadas de ar quente. A menina revivia e, por sua vez, devolvia-lhe o ar impregnado de alma, que ele absorveu e ficou tonto. Quis sentir o calor dos lábios dela. Conteve-se. Nádia se mexeu. Ronronou qualquer coisa, afofou o travesseiro, deitou a cabeça de lado e voltou a dormir, agora de bruços. O certo é que nem mesmo acordou.
Toda aquela noite fiquei a sugar as dejeções gaseiformes expelidas do corpo dela, até não mais aguentar e cair tonto no sofá. Meu corpo, minha cabeça, eu todo me encontrava impregnado de substâncias nádicas, se assim posso designar o resultado do combustível anímico de Nádia. De outras bagatelas também me servi. O cheiro que emanava das reentrâncias dos seus dedinhos dos pés, ah, como defini-los! Cheiros guardados, miasmas que se alojavam nas dobrinhas e que demoradamente eram aspirados. Nas axilas, o cheiro era outro, estragava-o o leve toque da fragrância industrial, que ainda se insinuava, porém, mais lá no fundo, com demorado apuro, foi-me possível separar, classificar e absorver a mais pura essência “nádica”.
Logo nasceria o dia e eu, morto, atirei-me ao sofá. O corpo cansado, a alma cheia de subsídios para passear, passeou.
— Ei! Acorde! Dorminhoco! Ei! Acorde! Dorminhoco!
Dobrada sobre mim, dava-me Nádia leves cutucadas na cabeça, acordando-me.
— Ei, acorde, dorminhoco. Olhe, veja — e mostrou-me a janela — o dia lá fora é lindo.
Nádia mostrava-se bastante alegre e sorria. Agitada, ia de um a outro lado do quarto. Foi à janela, pousou as mãos no batente, ergueu a cabeça, aspirou fundo o ar matinal:
    Aaaah!
Voltou-se para mim e zangou-se derretida.
— Ah! Não! Não! Vamos, levante-se! Então não acredito que vai perder este dia maravilhoso aqui trancado no quarto! Vamos! Vamos! Levante-se!
Levantei-me quebrado. O sofá não me caíra bem. Ora, atinei, mas alguma coisa estava errada. Então será que não tinha casa aquela mulher? Como vinha assim, sem nem mesmo pedir permissão, alojar-se no meu quarto? Dormir em minha cama? Tomar o meu café? Ração... ração... mais tarde. E o bafo na minha cara? Ai, se eu não estivesse tão cansado, dar-lhe-ia uma lição. Mas como? Como? Alquebrado eu estava, física e espiritualmente. Melhor seria ir ao banho. Mergulhei no chuveiro e lá fiquei, fiquei.
Quantas coisas mastiguei, remastiguei sob o chuveiro não queiras saber, posto não seres tu roedor de pensamentos, quanto menos ruminante, um verdadeiro ruminante, mas, vá lá, deixe-me assentar a memória no dia em que, sob o chuveiro, caíram-me sobre a cabeça águas que me trouxeram lembranças de longe, digamos, familiares.
Senhor Centelhas, senhor Centelhas, chamava meu nome uma voz longe, longe, longe... A porta se abriu e um corpo em sua fresta divisei, não claro como se eu o visse com os olhos límpidos, mas obnubilado como se o visse através de uma película de água. 
Assim me apareceu Nádia, e ela, ao abrir a porta e ver no chão do banheiro, não sentado, mas caído, e que talvez a ela lhe tenha parecido ver um homem desmaiado, pôs-se a bondosa menina a gritar, e eram os gritos histéricos que um segundo depois já galgava senhor Moreiras as escadas, irrompia feito furacão no quarto e, bufando no cangote da menina, pôs-se a perguntar o que foi, o que foi? Eu, de caído, já me punha de pé, erguido por mãos que, ligeiras, me levantaram do chão. Tonto ainda, safei-me das apalpadelas que me davam, recompus-me e estou bem, estou bem, disse-lhes contrafeito. De ingrato, e de mal agradecido, e que se dane, deu a entender a cara que os dois fizeram ao sair batendo a porta. Perdoem-me, perdoem-me, quis ainda gritar-lhes, na tentativa de salvar um bom relacionamento que talvez, por ventura se iniciasse, intentei ir-lhes no encalço, mas, quando atinei para essa idéia... sei lá quanto tempo não já havia passado... decerto bastante, pois já outra vez abria a menina a porta e, bem disposta, abriu-se-me num sorriso colorido. Como ilumina o ambiente um sorriso! pensei.
— Senhor Centelhas, senhor Centelhas, eis a boa notícia que esperava: sairá dentro em pouco uma escuna a passeio pela baía. Não é maravilhoso? Mas, ora, vejo que nem mesmo ainda colocou o calção! Vamos, senhor Centelhas, vamos, adiante-se, já estão os outros na ponte, senhor Moreiras, o padre, muitos lindos rapazes e, ah que brilhou uma luzinha nos teus olhos, és tão safado o senhor Centelhas, pois bem, é certo, adivinhaste, lá também estão muitas lindas garotas, não tão bonitas quanto eu, que, além de ser linda e graciosa, e esperta, e inteligente, e, acima de tudo modesta, sou também...
Por essa hora ri-me, sei que és tudo isso linda e graciosa, e esperta, e inteligente, e... ora, poupe-me, modesta é o que nunca foste; impertinente sim, imprudente também, acrescente-se...
— Nádia, chamei.
Acho que me excedi em euforia e ela, magoada, deu-me as costas, não abrupta e deseducada, mas ferida, realmente chocada com meu desatino. Vê como sou tonto? Que tinha eu de desperdiçar tão boa oportunidade de travar conhecimento com novas pessoas, e, pior, magoar tão linda garota. Modesta, modesta, fiquei a pensar, a procurar um gesto nela... não, não, não, é o alimento ainda fresco, não o ruminarei, mais tarde, mais tarde...
À janela pôs-se ela, em posição de... Deus meu! De costas já vejo... Fosse eu dado a pulos, certo é que os daria. Ora, então não os dei? Tanto que pulsou o meu coração! E tudo porque, de forma alguma, seria eu dali em diante um exclusivo ruminante. Nádia, em minha janela, os olhos voltados à rua, mas que, eu tinha certeza, nada viam, olhar fito num ponto parado, mexia, remexia com a língua dentro da boca, decerto, é certo, amigo, ruminações. Ah, perdoe-me a confusão, é a história assim mesmo confusa, e, digo mais, certinha fosse, história verdadeira não seria, pois tal disposição dela não é característica; confusa, anuviada, pantanosa, mentirosa e, rio-me, crede-me, em tais e tais pontos até eu, veja, até eu, tenho os olhos vendados.
É um pecado não compartilhar das ruminações dos outros. E uma desconsideração é atinar a tais pessoas para a vida, esta aí de fora. Mas, o que disse ela, o quê? Um passeio de escuna pela baía... Vamos, vamos, adiante-se, Nádia, os outros nos esperam.
— Uma desconsideração! Desconsideração é o que tens por mim! gritou-me, voltando-se em minha direção, os olhos lacrimosos, o ar ferido.
— Então não foi o que eu disse antes: ingratidão, pois foi, aceito que me atires na cara o que sou, disse-lhe.
— Eu, continuou ela, chorosa, venho aqui cheia de boa vontade, mesmo depois de ser escorraçada e humilhada, e tenho como testemunha senhor Moreiras, convida-lo para um passeio pela baía, e o que recebo, ingratidão, ingratidão.
— Como? Como? desesperei-me. Então não és tu uma rum...
Céus! Chãos! Rachastes-me da cabeça aos pés! Eis-me novamente só no mundo! Não se zangou Nádia pelo agravo de te-la tirado de suas ruminações, enganei-me, não ruminava, muito menos era ela ruminante. Zangara-se por outra desconsideração: a da grossura.
            — Perdoe-me! Perdoe-me! Não te quis magoar. Vamos encarar toda essa história como um grande mal entendido e, de ora em diante, proponho-te, sejamos claros, falemos toda a verdade, sem lacunas, estas que aparentemente nada dizem mas que no fundo dizem mais do que mil palavras.
            Vê, caríssimo, tinha o seu amigo, já por aquele tempo, uma forte noção do caos que era a sua cabeça, porém, reafirmo, em tudo é ela razoavelmente perfeita, posto estarmos tratando de uma mente perturbada, é claro, contudo, não esqueças, brilhante.
            — Então, recapitulemos, disse ela, contando nos dedos, consertemos essa história, primeiro: não comeste desde sua chegada, pois bem, providenciarei um bom repasto; segundo: não me olharás com o olho torto, desvirtuando desse modo o corpo elegante que tenho — girou o corpo, como fazem as modelos —; terceiro: não fuçaras entre minhas pernas e não me roubarás o ar pois se pensas que não sei de teus passeios noturnos vê lá que sei e vi e gostei – falou assim muito rápido, já disparando em direção à porta, abrindo-a, batendo-a e deixando no ar o seu riso espalhafatoso. E no meio dele estas palavras:
            — Meia hora, senhor Centelhas! O iate sai em meia hora! Adiante-se!
            Pela escada foi largando sua risada, que aos poucos foi sumindo, sumindo, sumindo, e, logo, um apito. Deus meu, desesperei-me assustado, como o tempo voa! Atirei-me de qualquer jeito pela escada, esperem-me, esperem-me, gritei-lhes já sem ar nos pulmões, e o comandante já soltava o barco da corda presa ao atracadouro, no cais, e, de um pulo, eis-me no convés.
            Ia enfim conhecer as belezas naturais da baía, e, depois, para alegria de senhor Moreiras, que tanto me quis falar delas e não o deixei, a ele eu, também orgulhoso, pois se eram realmente muito lindos os lugarejos! a ele eu diria, com os olhos rútilos de admiração: nossa, senhor Moreiras, como são lindas as paisagens por cá! Então não são! responderia ele todo cheio de si. Mas, pois, vejas lá que nem assim nem de outro modo disse-lhe qualquer coisa a respeito. Ah, caríssimo amigo, não sabes por que maus momentos o teu irmão passou. Peço-te, mais tarde, quando tudo souberes, de mim não te envergonhes, ou sei lá qual o estado do teu humor, rias de mim e esconjuro-te ao inferno! Porém, deixemos de imprecações, tomemos como ponto de partida o estreito rio, este que ia, ora reto e ora perfazendo curvas sinuosas, levando no seu lombo o veleiro que suave deslizava. Assim leve e tranquila ia a embarcação, ladeada por verdejantes mangues que repipocavam o abafado ronco do motor. Bem melhor seria fosse o barco à vela! como as naus de antigamente, e se eu fosse um pirata... e se... ora, ora, ora, veja lá que habita em cada um de nós ainda aquela criança que um dia fomos... deixemos disso, deixemos disso... Estreito é o rio e larga a sua desembocadura. O quê? perguntas se ia assim o iate, tão silencioso e tranquilo? Nada! Uma zoeira! Voltemos. Eu, assim que saltei do cais e os pés firmei no convés, estavam todos já em festa, um vozerio de múltiplas conexões, um já ir e vir eufórico de pessoas, o timoneiro nervoso com tais e tais imprudentes que insistiam em tirar-lhe a visão – a respeito disso, posteriormente, farei uma breve consideração – berrava: – Assim bate o barco! Pode um cego navegar com precisão?! Saiam! Saiam da frente! E todos abriam rápido, posicionando-se cada grupo de um lado da embarcação. Mas, para o bem da verdade, o certo mesmo é que de forma alguma tinha o timoneiro os olhos tapados pelas pessoas colocadas à sua frente, e todos, realmente todos sabiam disso, e, se não continuavam plantados nos seus antigos lugares, era só para não provocar uma contariedade no timoneiro, que todos viram logo, era um homem que dirigia o seu barco com mão de ferro. “Não se deve contrariar a um chefe, e se lança ele a nave às pedras? Não estamos, desse modo, todos perdidos, irremediavelmente perdidos? Ora se estamos!” Talvez assim alguns mais desavisados pensassem. Eu... perdoe-me a temeridade. Eu pensava assim e portava-me com temor diante dele. Criei raízes, enfiado num único lugar do barco. Os outros, não, voltaram eles aos seus antigos lugares, e não só naqueles, mas na popa, no tombadilho, na proa, e iam e vinham com desenvoltura, brincavam, pulavam, sorriam, cantavam, dançavam, e eu lá pregado no meu canto. O timoneiro, até ele, veja só, já brincava agora, e dava um gole de rum, estalava a língua, virava outro, e já ia o barco tonto e ninguém via, só eu, unicamente eu, o último sóbrio na embarcação é que percebia o estado crítico em que se encontravam. Porém verdade também é que só muito tempo depois ficaram eles nessa lastimável situação, de início não, iam até bem comportados, apesar da algazarra, mas já principiavam a beber. E umas pessoas, em particular as poucas que tivemos o prazer de conhecer, e que são: o garoto de dentes fortes, o gordo do ônibus (que para mim foi uma surpresa vê-lo ali, e muito à vontade, deixe-me dizer), senhor Moreiras e Nádia, estes me ignoraram por completo. Com uma bandeja recheada de salgados, docinhos e outras guloseimas ia o menino servindo a todos, exceto a mim, que, de seco e faminto, logo logo superaria o artista da fome, e, acho mesmo que, por pura provocação, quando ninguém reparava no moleque, rápido derramava ele um gole de álcool na garganta e me sorria. Quanto desaforo! Eu, claro, poderia muito bem meter-lhe um cachação, no entanto fingia nada ver, distraía-me olhando uma ilha à minha esquerda. Vai o barco mais para o sul, ouvi alguém dizer, visitar uma igreja secular, num lugarejo denominado Mirante. Nádia, por sua vez, ela que tanto implorara para que eu fosse ao passeio, nem me notava. Num grupo jovem que cantava e dançava, lá estava ela a erguer mãozinhas acima, um trejeito no corpo, mãozinhas abaixo, rebola que rebola, rebola, requebra e vai até embaixo. Uma graça, naquela dança tribal, porém, mais tarde, eu, que mais parecia um clandestino no barco, na cidade, enfim, no mundo, realmente nada vi que deveras me encantasse. Ilha Careca, assim apelidei a ilha que, em verdade, soube depois, tinha o nome de Ilha Maior, e que daquele solo se extraía a barita, produto do qual senhor Moreiras já me havia falado. Uma devastação, trocaram árvores, que com certeza houvera ali, por uma elevada crosta de terra vermelha. E onde a Ilha Menor? bateu-me esta curiosidade, mas, a quem perguntar? A Ilha Menor fica lá atrás, ouvi alguém chegar e dizer, um cheiro veio junto. Era Nádia que, sem que eu a visse se aproximar, dava-me a informação. Ah, sim, obrigado, respondi-lhe, gentilmente. Uma risada, dessa vez contida, compreensiva até. Repreendeu-me ela, rindo: o que foi, senhor Centelhas, não se sente bem? Por que me responde assim, tão, tão formal. Bem, é... é... Vamos, venha, senhor Centelhas, não seja acanhado, somos todos amigos. Ou não somos? Claro, claro, claro, respondi-lhe com tímida efusividade. Ah, mas olhe para o senhor, e olhou-me dos pés à cabeça. Sorris tu. Leitor, e parto-lhe a cara! Nádia não acreditou que alguém pudesse ir a um passeio de barco vestido de, ai, camisa, calça e sapato social. Todos, todos desde o início já me olhavam assim de esguelha e, para afastar o riso de suas caras, fingiam constrangimento e não me encaravam direto. Nádia, um pouco mais dada a mim e, disse-me ela, ratifico, ser minha amiga, alertou-me para o papelão. Até o padre, apontou ela para o gordo, até ele veio esporte. Como? Como. É então aquele homem um padre? eu quis saber. Sim, é ele um padre, da Igreja Nossa Senhora da Assunção, lá em cima, na Cidade Alta. Por quê? Acaso o conhece de outro jeito? Não, não, apenas curiosidade. Então, senhor Centelhas, não quer mesmo se juntar aos outros? E como não! Ofereceu-me o seu delicado bracinho, no qual enfiei por dentro dele o meu, e assim, entrelaçados...
– Até que enfim, senhor Centelhas, recebeu-me entusiasticamente um sujeito que eu mal conhecia, imaginei logo fosse um desses que se agarram a outro mais importante só para aparecer, mas eu com meu brilho interior, minha inteligência, enfim, minha educação, limitei-me a um reservado olá! Assim ficaria se Nádia, apressada, não nos fizesse as apresentações.
– Senhor Centelhas, o prefeito; prefeito, senhor Centelhas.
Rápido avancei a ele quase num contato de irmãos, nos estapeamos nas costas e rimos sei lá de que ou porque.
– Sente-se conosco, amado Centelhas, e mostrou-me um banquinho junto a outros dois, nos quais já se encontravam sentados dois homens, e ao centro um pequeno tablado, e sobre este uma peça de baralho. E sabia eu lá jogar!
– Como, senhor Centelhas, não sabe o senhor movimentar umas simples cartas de baralho?
– Meu pai, senhor prefeito! disse-lhe nervoso. Meu pai nunca me deixou, sequer uma vez, distrair-me com tais passatempos. Mas que vergonha! pareceu-me ver isto na cara de todos eles. Logo o prefeito sentou-se, largando-me de lado, os seus e meus ex-amigos voltaram os olhos para as cartas e, partindo-as, embaralhando-as, distribuindo-as a cada um um tanto, esqueceram-se de mim por completo.
Sabes, caríssimo amigo, o real sentido da palavra ilha? Por certo que sim, deves ter frequentado o banco da escola. Ilha: um monte de terra cercado de água por todos os lados. E se a ilha for um homem? E se este homem fores tu? E se em meio a essa água houver um faminto tubarão, ou vários? Tu, o que tu farias? Não te sentirias já, antecipadamente, estraçalhado e engolido por eles? Voltei ao meu canto. E lá está a pulcra. Jogou-me aos tubarões, entregou-me às feras. E como dança, rebola-se toda, e vai até em cima, para, remexe, bole que bole, vai até embaixo e, eis que me viu, e vem... distração, distração, lá do outro lado uma praia. Que linda! Uns coqueiros, uma casinha branca, aqui mais perto um pescador e...
– Senhor Centelhas, despertou-me ela do agradabilíssimo devaneio.
– Como é lindo este lugar! Disse-lhe, apontando a esmo (apontei em direção a uma plataforma de petróleo).
– Quê?! Então achas linda a plataforma?
Não soube que lhe responder. Adotes tu, leitor amigo, uma cara triste e infinitamente perdida e sinta-se como eu me senti. Vê como te sentes arrasado? Lembra-se do rato? Que fazemos? Enfiemos a cara num buraco. A hombridade que se dane!
– Vejo que não há outro jeito, senhor Centelhas, senão ficando ao seu lado. Precisa um homem de companhia, alguém com quem troque uma, duas palavras...
Vai-te, vai-te leitor, não te preciso mais, vês que tenho uma amiga, e ela me compreende. Tu, leitor, és tão calado... olha, repara, caso queiras se abrir comigo, abre-te, depois fecha-me e eu te guardarei, como faz um verdadeiro amigo, no coração. Mas, por ora, vai-te, vai-te.
E assim ficamos a conversar, enquanto homens jogavam e bebiam, mulheres dançavam e bebiam, menino dançava e bebia.
– Tem fome, senhor Centelhas? Quer beber?
– Fome? Bem, um tiquinho. Uma bebida cairia bem.
– Emanuel, Emanuel, gritou ela ao menino, que, agora eu sabia, chamava-se Emanuel, vem cá, sirva-nos uma taça de vinho.
Olhou-nos, mas logo virou a cara, e a garrafa, e serviu mais bebida ao grupo do prefeito. Estávamos na proa, sob um sol que era abrandado por fresca brisa.
– Emanuel, Emanuel, gritou-lhe Nádia de novo.
– É impossível ele nos ouvir, disse eu, estamos tão distantes... tão separados por essa gente que dança, joga e bebe...não nos ouvirá, nunca, jamais atenderá ao nosso chamado...
– Diabo! praguejou ela. Fosse eu a primeira dama, logo viria lamber-me os pés. Também, que tem o senhor de ser assim tão... tão vergonhoso? Se outro o senhor fosse, não esperaria, de um pulo e um puxão arrebatava o lanche da bandeja e se fartava, mas não, prefere jejuar...
“Vergonhoso? Vergonhoso?” atinou-me um caso, uma historinha que se passou com... ai, já dizia aquele escritor: há segredos que não revelamos a um desconhecido, nem a um amigo, nem a nós mesmos. Pois bem, principiei a contar-lhe o caso, e ela muito interessada pareceu ficar com o entretenimento, pois, disse-me ela: – Ah que finalmente vai se soltar, senhor Centelhas.” Pois bem, pois bem, soltei-me, com certo efeito, é claro. Quem não quer impressionar, comover, parecer interessante? Ou mesmo ridículo?

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Reflexos do espelho

“Estou bem, agora que vimos um ao outro”, disse o Unicórnio,
 “se você acreditar em mim, acreditarei em você.
 Negócio fechado?”
Alice através do espelho, de Lewis Carroll.

Fechando a porta e virando-me para o interior do quarto, não estranhei a escuridão. Abri a janela, que, como tanto me disseram a boa Nádia e senhor Moreiras, dava para o rio Acarai.
Abri-a e vi as luzes dos postes acesas. Já era noite. Não me assustei com o avançado da hora.  Acostumara-me a sofrer esses lapsos de tempo. Às vezes as lacunas eram breves, uma hora, um minuto até, constantemente um segundo, porém só muito raramente se alargavam tanto. De certa forma isso faz parte do processo de ruminação ao qual me submeto: enquanto rumino, o lado de fora se me abstrai, dele perco o sentido.
    Para que tudo isso? Para quê? — pergunte-me, leitor.
Uma outra pergunta faço agora: serei mesmo eu, por vontade própria, que me submeto a essa digestão mental? A resposta é: não sei. Uma outra vez, quando dispuser de tempo, entregar-me-ei a esta análise. Mas, por ora, deixe-me lavar a alma (é um pensamento: sempre que sinto a alma suja, tomo demorados banhos; saio melhor de sob o chuveiro, a limpeza do corpo de fora reflete no de dentro) portanto, o que me faltava naquele momento era um banho. Ir-me-ia a ele e esquecer-me-ia do rio, de Nádia, de Leonora e...
Segurando ambos os lados do meu pescoço com as mãos, enfiava-me Leonora sua língua até a garganta.  Assim a senti, porém ela, depois, disse daquele modo não fora. Muito pelo contrário, apenas percorria com a sua língua o céu e toda a base de minha boca. Mais, enquanto o fazia, também ela, e não só eu, dava um pouco de si, pois espargia, como se fosse uma passaroca alimentando seu filhote ao bico, boa quantidade de saliva em minha boca, e, mais, sentira, durante bom tempo fiquei a sugá-la, como se a quisesse secar. Portanto não havia sido ela e sim eu quem me excedera naquele beijo. Bem quis ela fazer-me acreditar nisso. Mas, fosse como fosse, já era tarde, eu a tinha magoado, não só por jogá-la de encontro à prateleira do outro lado, na parede, também sim por ter-me mostrado espiritualmente grosso, o que ela não tolerava. Fosse violento por causas externas, porém com as causas do coração... ah, meu bom amigo, disse-me ela, com estas há de ser o homem e também a mulher delicados. Excessivamente delicados. E saiu batendo a porta, um gesto, digamos, extremamente grosso... no entanto perdoável, não só por ser conseqüência de um erro meu, mas sim por ser, de certa forma, uma grosseria alheia aos nossos sentimentos. Ficasse a situação por esse patamar, tudo ia bem. Mas, como agravante da grosseria, estávamos em casa de seus pais. E eles, pai e irmão de Leonora, diferentes da porta que não tem ouvidos, pois quem os têm são as paredes, rápidos do quarto acudiram ao estatelar do corpo da filha na prateleira, e fizeram-se presentes na sala.
Ora, mas tudo por causa de um beijo mal dado! Ou seria um beijo maldado? — pergunte-me, leitor. Fique sem saber a resposta. E, se quiser, fique remoendo, remoendo, remoendo...
Que importância tem esse questionamento, se já estavam as feras com suas garras enfiadas no meu sofrido pescoço?
— Fale! Fale, homem mau! O que fez com minha filha? — disse o pai de um lado.
— Ah! Hum! Ah! Hum! Hummm! — urrou o irmão do outro, um adolescente: perdoe-lhe a irascibilidade. Mas o fato é que ambos cravavam suas unhas na minha jugular, o que me deixou sufocado.
    Fale! Vamos, fale, desgraçado — repetia o pai.
Bem gostaria de falar-lhes. Mas, como podia? Apertavam-me tanto o pescoço!
    Parem! Parem! — irrompeu Leonora, gritando, na sala.
Imediatamente obedeceram. Largaram-me, recompuseram-se, sentaram-se no sofá e alargaram os olhos e os ouvidos, ansiosos por ouvir o que tínhamos a dizer. Foi ela quem disse:
— Não briguem vocês por uma coisa tola! Senhor Centelhas não me fez nenhum mal, ao contrário, é ele um homem bom. Quer-me bem, é verdade, mas... descontrolou-se, foi isso, faltou-lhe o ar da delicadeza e...
— O ar da delicadeza?! — perguntou desconfiado o pai — Diga-me cá, filhinha, mas que raio de eufemismo é esse que nunca ouvi. A que diabo de grosseria ele suaviza?
— Ora, meu pai — começou ela, ganhando tempo — apenas quero dizer que... bem, faltar o ar da delicadeza é a mesma coisa que... pensando bem... é abrandar a intensidade de um beijo mal dado. Pronto, é isso.
Eu, jogado num canto, há tempo pedia:
    Água! Água, por favor — mas quem me ouvia?
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora, contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Leonora, irritada.
— O quê? O que disse, minha flor? — perguntou curioso o pai, o irmão já distante, pensava em tal e tal coisa — Então quer dizer — continuou o pai — que se sufocou este traste com um beijo? Vou rir, ora se vou — E escancarou a boca para que nela se instaurasse um sorriso animal.
— Animal! Animal! Isto é o que és — disse gritando ao pai de minha noiva.
Para quê? Ai, malditas palavras foram aquelas! Todos na casa silenciaram de repente, o pai, minha gatinha de olhos verdes, e até o irmão, um grandessíssimo distraído, todos perderam a boca, só a porta da rua gemeu para que uma senhora gorda entrasse. Eis que porta fala!
— Acabei-me em compras — disse ela; não a porta, a mãe de Leonora.
O encorpado da voz e a obesidade do corpo da mulher foram chupados. Não só eles, mas também as paredes, os móveis, o tempo e todo o espaço em redor. Realmente a porta rangeu e alguém entrou. Naquele momento estava eu à janela da pousada, no meu quarto, perdido a olhar o rio. Quanto tempo fiquei naquela abstração, remoendo uma cena vivida com Leonora? Não sei. E, se não fosse o gemido da porta cortando esse elo, decerto a cena continuaria por mais horas e horas. Virei-me em direção ao limiar e ainda pude ouvir a moça dizendo: (a voz chegou-me misturada à da mãe de Leonora, e eu ainda sob o efeito daquele momento).
— Trouxe-lhe nova refeição, senhor Centelhas — disse Nádia em pé, parada no vão da porta.
    Gorda! Gorda! Isto é o que és! — gritei-lhe, irado.
Assustou-se a mocinha, e com razão.
    Gorda, eu?!
Mais uma vez aqueles olhos... Podia agora vê-la melhor, em outro plano e... ora, constatei atônito: Nádia não passava de uma criança. Quantos anos? Doze, treze, se muito, quinze. Ao pé da escada não a vira pequena, talvez por ter-se portado como felina. Escondera-lhe o real tamanho a valentia. Mas dessa vez, ali em minha frente, plantada de pé, muito bonitinha e ereta dentro de um traje branco que talvez lhe tenha forçado a vestir senhor Moreiras, e portando-se como vítima de um mundo cruel, oh, senhor, como a quis tomá-la ao colo, beija-la tanto e pô-la a dormir! Velaria o seu sono como se eu fosse um deus, um pai protetor...
    Gorda, eu?!
— Oh, não! Não! Perdoe-me a estupidez! Encontrava-me perdido em... Ora, mas veja que minhas palavras foram mesmo muito estúpidas, és tão magrinha...
    Magrinha, eu?!
Logo percebi o quanto difícil é agradar as mulheres.
Furibunda, de um coice Nádia fechou a porta. E entrou no quarto.
— É inacreditável como as pessoas são cegas! — disse ela, enquanto caminhava até a mesinha de centro. Depositou a bandeja sobre esta, erigiu-se sobre si e muito ereta falou: —  Extremistas! Assim são os adolescentes. Extremistas! — “Ora, meu Deus” pensei, “com quem será que se rebela meu pobre bebê? Decerto um namorado, e, não tendo com quem se abrir, vem, assim, introduzindo dessa forma o assunto, e comigo! Obrigado, Senhor, por esta graça. Eis a oportunidade de orienta-la, não com a extremada firmeza dos pais, mas assim assim uma meio moderada conversa de amigo, porém nunca frouxa demais. Eis que vou orientá-la”.
— Filhinha... — nem bem abri o bico, rápida interpelou-me:
— É inadmissível! Inadmissível! — falava com os lábios cerrados e os olhos muito acesos, fula de raiva — Quem pensa que és, para assim, logo de chofre, emitir opinião destorcida a meu respeito?
Só aí então foi que liguei o pronome ao verbo e vi que se referia a mim.
Encarava-me direto nos olhos. Sempre fui tímido, baixei os meus. Para quê? Para quê? Tinha de ser firme e encara-la até obriga-la a baixar os seus, dobrá-la, remoê-la, remoê-la... depois.
— Há, há, há, há, há!
Ria-se de mim, a cretina. Com certeza adivinhou minha fraqueza em tempo de criança, quando, muito facilmente, qualquer garotinha fitando-me bem no fundo dos olhos me fazia baixar os meus. Naquele tempo era só uma brincadeira e, ainda assim, causava-me os maiores estragos.  Mas não daria a Nádia o gostinho da vitória, não cederia um dedo, nenhuma concessão.
Esta bravata interior eu erguia, e, enquanto a elevava além do chão, subi tanto em meus propósitos de vencê-la que, não tendo mais onde pôr os pés, inevitavelmente as pernas fraquejaram e — impossível não dobrá-las — junto com elas foram os olhos lamber o chão, e toda a cara, mas, se havia ainda um pouco de hombridade em mim — decerto que há em todos os fracotes — socorreu-me ela. Não importa o brilho que ela tenha, umas socorrem seus donos com altivez, com elegância e classe; outras... um ratinho, mesmo um ratinho traz dentro de si um algo de nobre... saber recuar, disfarçar, distrair e meter a hombridade pelo buraco, eis aí a mínima condição humana.   Por isso pensei em me desculpar, dizer-lhe que era mesmo muito bem feitinha de corpo e mesmo muito difícil saber se magra ou gorda.  Porém não o fiz, o que me pareceu ainda pior.
            Nádia, cansada de me tripudiar, sentou-se em frente à mesinha de centro e começou a servir o café.
            Bem, ponderei, já é alguma coisa colocar o meu café, de certa forma dobra-se, está sendo servil.
Esperei que terminasse de servir e se retirasse, mas, quem disse! Com a mais descarada elegância do mundo pôs-se a emitir risinhos oculares que, em tudo, já evidenciava o deboche e a superioridade.
Ato contínuo, levou a xícara aos lábios e ficou a me olhar por sob os olhos, como se espreitasse uma reação de minha parte, como se previsse, a cínica, que a qualquer momento eu chegaria ao meu limite e explodiria. Hi, hi, hi, hi, hi, ri-me por dentro, este gostinho eu não lhe daria. De fato, não dei. O que fiz? Dei-lhe as costas.
Feito um rato chiei e enfiei a cara no buraco. Nenhuma outra foi a resposta. Depois remastiguei esse meu comportamento. Havia, não sei de que modo, uma certa ligação entre o roedor e o ruminante, como se fossem eles parentes bem próximos, como se o ato de ruminar e o de roer fossem um só.
Da janela olhei para fora. O ar fresco e na rua poucas pessoas. A ponte que se encompridava indo de encontro ao rio, levava em suas bordas duas fileiras de postes com lâmpadas que clareavam muito mal. O reflexo da luz bronzeada brilhava na água escura do Acaraí. Na extremidade da ponte um homem tomava ar, ou talvez só pensasse, gastasse tempo, poluísse a natureza... virou-se. Ora, veja, senhor Moreiras! Então se dava ele a esses passatempos... Seria também um ruminante? Logo vi que não, pois bastou me ver à janela e bateu em retirada. Um verdadeiro ruminante não teria essa reação. Um homem, e ainda mais à noite, sim, pois a noite pertence mais aos sentidos do que à razão, a noite com suas penumbras, seus semitons, todo a sua característica barroca, à noite o homem viaja, não para fora, mas para dentro de si, quanto mais se a noite é fresca e se sob ela há uma ponte e um rio para nele se desaguar... Um verdadeiro ruminante não veria um outro à janela, nem ninguém, nem nada. Apenas desaguaria, desaguaria...
Eu sei essas coisas porque sou um homem muito inteligente; outros nem se dão conta de que são ruminantes, (estes se assemelham ao boi e ao matadouro tanto se lhes faz ir ou não).
— Água! Água, por favor!
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora, contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Leonora, irritada.
Fiquei muito tempo plantado à janela, remastigava um episódio de minha vida com Leonora. Depois, após ouvir o apito de um barco na ponte, pisquei rápido e, hi, hi, o rato ressurgiu, lembrando-me de que Nádia tomava o meu café, abancada no meu sofá, em minha sala.
De uma virada repentina e violenta, mandei o rato aos infernos. Ah, como é bom sentir-se valente! Senhor de si! Dono da situação! Mesmo que seja por um segundo...
Bem se vê o tempo em que estive fora! Voltei à janela e constatei que na rua não se via um pé de gente. A ponte deserta. Silenciosa. Ao longe, o som de buzina de carro. E, de novo, o silêncio. Dentro do quarto, o ressonar de Nádia.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Clotch!


Quantas são as pessoas vergonhosas neste mundo, meu Deus! Quantas são as que, aceitando por obrigação um convite, vão almoçar em restaurante, na presença de outras pessoas que, parecem, têm o costume de ficar observando cada mastigação do outro comensal. Não se sentem então aquelas pessoinhas engolidas pelos olhares glutões, olhares de homens despojados e barrigudos, homens que, fingindo o menor desinteresse, insistem em nos humilhar com suas superiores qualidades de descontração? E as mulheres! Ah, estas são inimitáveis. Sentam-se eretas – é-lhes necessário posicionar-se assim – e com a mais descarada elegância do mundo põem-se a emitir risinhos oculares que, em tudo, já evidencia o deboche e a superioridade.
Quantas são enfim as pessoas que, após sair do restaurante, chegando em casa não se põem ligeiro a encher um suculento prato? E como é bonito juntar a fome à vontade de comer! E como se lambuzam e são ruidosos! Que importam os ruídos da maceração, se estes proporcionam um prazer acrescentado também ao ouvido? Sim, o ouvido é também um órgão do prazer degustativo. Percebe-se mais nitidamente este pormenor quando se morde a maçã e ela faz clotch! Porém toda a descontração no comer desvanece com a etiqueta.
“Não, não, não é assim que se segura o garfo, meu filho. Preste atenção, este copo aqui é para água, este outro para suco. Com esta mão você segura o garfo e com a outra, a faca. Não, não, meu filho, não se deve colocar os cotovelos sobre a mesa. A sopa deve ser tomada sem fazer ruído” – dizem que no Japão isto é muito contra as regras à mesa. Deve-se, sim, tomá-la fazendo biquinho e acompanhar a sucção com bons e audíveis hiisssc!
Agora, vejam vocês que, após haver ceado, põe-se o menino a importunar a mãe, coisa que ela jamais poderia compreender, com insistentes: estou com fome, mamãe! Estou com fome, mamãe! Ainda estou com fome, mamãe!
“O que há com você, meu filho? – pergunta a mãe, já pensando estar o seu principezinho empestado de lombrigas – então não já comeu?
“Comi, responde o inocente, quase já chorando, mas, mamãezinha, morro de fome. Posso pegar uma fruta?
A mãe, piedosa como todas as mães, concede a extravagância, que o menino, faminto, a devora com ruídos e lambuzações incompreensíveis a toda e qualquer regra.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O espelho



     O sono que tive não foi reparador, ao contrário, levantei-me bem cedo, quando não havia sol e as luzes dos postes ainda se encontravam acesas. Não pude compreender como dormira tanto, sim, pois desde às 7 horas do dia anterior que eu dormia. No entanto, tinha o corpo quebrado, como se acabasse de chegar em casa de madrugada, voltando de uma festa, onde minhas energias tivessem se exaurido. Apesar do cansaço e do mal-estar, seria impossível deitar e dormir de novo. Portanto, decidido, fui ao banheiro e lavei apenas o rosto. Fazia frio, condição pouco estimulante para banho. Escovei os dentes e, enquanto fazia isso, olhava meu rosto num pequeno espelho quadrado de bordas alaranjadas, pendurado na parede, logo acima da pia. Vi um rosto sem expressão, marcado por olheiras escuras e um olhar apagado.  “Deus do céu! assustei-me. Mas que aparência horrível! Como pode alguém se apresentar com essa cara?” Fiquei uns dez minutos olhando aquela expressão apática, até que meus olhos mergulharam-se uns nos outros e, como se uma nuvem pairasse entre mim e o espelho, ofuscando tudo, subitamente não vi mais meu rosto.
Ouvi batidas na porta. Agora podia ver mais uma vez meu rosto no espelho, meu nariz, e meus olhos assombreados por profundas olheiras.
Enquanto atravessava a sala, olhei o relógio e me censurei por ainda não ter saído. E, mesmo sabendo ser toda minha a culpa por ainda estar ali no quarto, recriminei quem batia à porta com tanta insistência, cuja presença só me aborreceria ainda mais. 
“Era só o que faltava! Sempre é assim. E agora não pode ser diferente.”
     Teria sido bom recompor-me, enfiar-me me algum estado de espírito que mostrasse realmente quem eu era. Mas nem pensei isso, tão rápido abri a porta e, quando vi, tinha em minha frente um raio de moça.
Com uma bandeja apoiada na mão esquerda e a direita erguida ainda em posição de bater, a moça não pôde controlar o impulso do murro que já dava na porta e, desajeitada, teve o corpo lançado à frente, esbarrando-o no meu. O murro passou-me zunindo na orelha esquerda. A bandeja, suspensa por uma reação automática dos músculos do braço, foi lançada para trás, o que provocou certo estardalhaço ao cair no chão.
Parados. Ficamos assim, assustados, um olhando a cara do outro.
“Que lindos e grandes olhos castanhos! Que boca! Que testa! E os cabelos! Ah, nada disso, testa pequena e bem feita; olhos realmente castanhos, mas não grandes, profundos, cansados, porém com intenso brilho e força, sob eles enormes olheiras enegrecidas, as quais contrastavam com a pele alva. Faltou o quê? Ah, a boca, não era carnuda, nem tampouco fina, regular, diria, não obstante rosada, de lábios firmes e, permita-me um deleite: frutinhas frescas. Os cabelos? Não sei, desalinhados...; nariz graciosamente arrebitado e, a respiração... bufos de égua em trote, bafejos expelidos de vulcão: um gozo...
E fala! (Que pena! Afastou-se um pouco de mim. percebe como eu estava um cretino?) vamos aos cumprimentos. 
 Bom dia, senhor, vim trazer o café. Nádia. Meu nome é Nádia – e estendeu-me a pequena mão.
– Centelhas – apertei a sua com firmeza.
– Ai – gemeu, franzindo o cenho e o nariz, apertando os olhos e elevando um pouco o lábios superior.

Uma rosa vermelha,
com suas múltiplas reentrâncias, ensaiando,
no sofrer do nascimento,
o desabrochar.

(Agora era o lado poeta). Dois dentes destacavam-se bem no meio de outros que se seguiam perfilados. 
“Que boca! Que fome de beijá-la!”
Contive-me, aspirando fundo.
Antes de falar outra coisa, limitei-me a olhar as horas.
 Queira me desculpar, senhor, devia ter vindo mais cedo, mas minha mãe, ela sofre de asma, passou muito mal essa noite, e a farmácia não abre antes das oito, especialmente nos dias de hoje abre ainda mais tarde, como se não fosse possível a alguém ficar acometido por algum mal justamente por hoje ser o dia que é. Tive que esperar abrir, comprar o remédio e voltar correndo em casa e medicar minha mãe, só aí então pude vir ao hotel e preparar o café dos hóspedes.
Você já serviu os outros hóspedes? perguntei-lhe, muito sério.
Oh, não, senhor, vim trazer primeiro o seu café. O senhor é novo por aqui e nem me conhece, não sabe que tenho uma mãe doente. Os outros hóspedes são todos conhecidos, eles vão entender se me atrasar. Acontece, às vezes, de eu nem precisar me explicar ou pedir desculpa pelo atraso, eles, muito cônscios que estão do estado de minha pobre mãezinha, simplesmente sorriem muito docilmente, como se me confortassem por ter uma vida difícil. Nessas horas me sinto feliz.
A moça me deixou desarmado. Usou um argumento estranho para me deslocar. “Diabos! Eu só queria recriminá-la, como faz um verdadeiro chefe.” Então, muito ligeiro e docilmente, perguntei-lhe se podia esperar um pouco, enquanto eu via uma coisa lá dentro. Na pressa com que tomei a decisão, bati a porta na sua cara e, rápido, corri até ao banheiro e parei em frente ao espelho. Tentei lembrar uma cara que fiz um dia, quando eu nem notei que Leonora, minha esposa, me olhava. Só depois que eu a vi, foi que ela disse:
  Você estava com uma cara tão boa.
Boa como? perguntei-lhe.
Ah! Você parecia estar livre dos problemas do mundo.
Depois que Leonora me disse isso, assim que pude corri ao espelho e tentei decorar aquela cara. Julguei que fosse uma cara simpática. Mas, dias depois, como eu insistisse em usá-la continuamente, a cara virou máscara, uma caricatura de mim. E, o efeito desastroso de usar uma máscara foi, um dia, Vera vir muito dolorosamente me dizer das suas dores de cólica e eu, inocente, mostrar-lhe uma cara simpática.
   Você parece um bobo com essa cara, disse ela na sua dor.
A partir daí fiquei incerto se devia ou não usar aquela cara simpática. E não foi só isso, de certa forma a máscara grudou na minha memória, e de vez em quando ela vinha, insistente, querendo cobrir minha cara natural, que é a triste. Passei a ter outra personalidade, uma intrusa, uma indesejável.
E agora, ali no quarto do hotel, tentava lembrar com a máxima fidelidade aquela cara simpática, mesmo com a forte suspeita de que, tão logo eu a usasse, sobreviria a esse ato um grande e avassalador mal-estar. Peguei-a e vesti-a. Voltei correndo à sala e abri a porta. A moça não estava mais lá.
Aproximei-me da amurada do corredor e ouvi uma voz de homem gritando com alguém, lá embaixo. Desci para ver o que estava acontecendo.
 É mesmo impossível se tolerar coisas desse tipo, gritava senhor Moreiras, o proprietário do hotel, com a moça do café. E continuou: não se pode dar um dedo, a mão, e logo nos tomam o braço, o corpo, tudo, tudo; confundem tudo, liberdade com permissividade, cordialidade com amizade. E agora, e agora, mocinha, é capaz de ver a situação real? Olhe para mim. O que vê? Um liberal? Um amigo? Um cordial? Vamos, diga, o que vê? Ah, não diz nada! Pois bem, quem cala consente. E é justamente aí que está a burrice, poderia responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá.” Mas fica calada, sem argumento, nem ao menos pôde me responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá,” Hum.
  Mas foi justamente o que fiz, senhor? disse a mocinha, muito recolhida em si.
 Quê?! Mas como ousa desafiar-me? Ah! logo vi, pertence àqueles tipos dissimulados! Espera que afrouxemos o laço e nos dá o bote.
Aproximei-me dos dois. Senhor Moreiras sorriu. A moça do café procurou recompor-se rápido e também sorriu. Fiquei tão envolvido com os gritos de senhor Moreiras que esqueci a máscara simpática. Portava agora tão somente a cara da alma.
– Vê, senhor... senhor..., dirigia-se ele a mim.
 Centelhas.
 Veja bem, senhor Centelhas, bonito nome, esta é Nádia, a moça do café. Repare bem, repare bem, se não o acordamos mais cedo é porque hoje é domingo; dorme-se até mais tarde aos domingos. O senhor dormiu bem? Ah, vê-se que dormiu, olhe só que cara esperta! Um passeio pela baía vai lhe fazer muito bem. Os manguezais são lindos, dizem, eu não acho, mas já que dizem, são realmente muito lindos. Tenho um barco a motor, eu mesmo posso levá-lo, seria um prazer. O senhor tem fome? Quer provar um pedaço de requeijão? Vou pegar.
O homem se apressou em ir pegar o requeijão.
A sós com Nádia, perguntei-lhe se aquele dia era realmente domingo. Ela respondeu:
 Oh, sim, hoje é realmente domingo. Poucos estabelecimentos estão abertos. Por isso esse silêncio. Não há o que se fazer domingo neste lugar. O senhor gostaria de passear pela baía?
 Oh, não, respondi, imitando-a na fala e no gesto expressivo que colocava no rosto quando falava assim.
 Ah, o senhor está me imitando, reclamou.
Nádia era de uma docilidade incrível. Via-a como uma filha amada. Ao refletir em mim tal pensamento, fui tocado por tamanha felicidade que me senti incapaz de sentir ódio. Sorri para ela. E o olhar que ela me retribuiu tocou tão fundo meu coração que quase deixei cair uma lágrima.
     Oh, não queiram os senhores imaginar o que aconteceu no dia seguinte!... 

sábado, 11 de setembro de 2010

Sinal vermelho

Entre carros que passam nervosos, eles se veem, cada um em um lado da rua. Na outra pista, na frente dos carros, o malabarista pintado de palhaço. Bolas azuis, vermelhas e brancas sobem e descem, acomodando-se na mão do artista, que as acolhe na mais segura cumplicidade. Ambos são íntimos: bolas e mãos. O vento vem do Atlântico e sopra as folhas das árvores. O letreiro da vídeo locadora balança. As bolinhas do malabarista são forçadas a atônito desequilíbrio, mas as mãos do homem, franzino e colorido, as protege do estardalhaço de uma queda. Aliviado, ele as guarda nos grandes bolsos do seu macacão vermelho e amarelo. Sorri para os carros à sua frente, na esperança de receber uma moeda. Pela pequena fresta do vidro surge, feito mágica, uma moeda de 50 centavos. O palhaço faz um gracejo, acompanhado de largo sorriso. O vermelho dá lugar ao verde. O malabarista corre para a outra pista, posiciona-se na frente dos carros e o show recomeça. Os cabelos dela esvoaçam. Em vão tenta fazer um coque na nuca. – Mas que vento! ela diz. Aspira fundo e sente no ar o cheiro que vem da praia. Entre o passar veloz dos carros, ele a vê, surgindo e desaparecendo. O seu filme é ela, no quadro a quadro de uma película defeituosa: levantando o braço direito; a mão esquerda indo à cabeça; o rosto displicente, de perfil, voltado para a igreja. E, no virar para a frente, ele a vê toda. Vê o seu olhar traçando um caminho que passa por ele, arrastando-o. Lembra-se de quando era menino e matava os vaga-lumes. Imobilizáva-os  no chão, pisava-os com força e traçava um rastro de luz verde sob seu pé, que aos poucos ia se apagando. – O seu olhar é uma estrada de luz, ele pensou. Sentindo os lábios ressequidos pelo sal que vem do mar, ela molha-os com a língua. Agora, seus lábios estão desertos. Estranhos passam por eles. Meninos que cheiram cola na praça se aproximam dela. Ele se preocupa, mas só. Ela agora é terra distante. – Sai daí! Sai daí! ele quase grita, em silêncio. Sem pensar, seu braço afugenta pássaro: xô, xô, sai daí! Recolhe o braço e a insensatez. Ela vê o letreiro abóbora da agência bancária se acender. As luzes na praça se acendem. A fonte luminosa esguicha água em jatos coordenados, acompanhando o ritmo da música. Na esquina da calçada onde ele está, pessoas se aglomeram em redor do carrinho de cachorro quente. Pessoas começam a chegar para o teatro. O movimento fica intenso. Pessoas indo e vindo, desencontrando-se indiferentes. – Mas que interessante! dizem ao mesmo tempo, voltando os olhos para a igreja, que começa a tocar a Ave Maria no badalar do sino. E se olham tranqüilos, duas crianças que compartilham a novidade, já esquecidas da briga. Mas logo o badalar final desfaz os sorrisos. Paira entre ambos mais que o rígido metal dos veículos, que passam ligeiros. No meio da pista, no final do show do palhaço, quando as bolas sobem e descem, um breve desequilíbrio, e elas caem. – Óóó! quase se ouve no íntimo de cada espectador. – Lamento muito, meu amor, ele diz. – Fechado! dizem, e avançam decididos. Cruzam a rua. Passam lado a lado, mas nada se dizem, não se esbarram, nem mesmo se olham.

domingo, 5 de setembro de 2010

Operação duplo J

Eu disse, pare o carro, quero vomitar.
Minha mulher parou o carro, abri a porta rápido e vomitei na rua.
– Pronto, agora podemos ir, eu lhe disse.
– O queixo está melado.
Logo adiante ela parou o carro de novo e vomitei.
– Aguenta chegar até o hospital, agora?
Não lhe respondi nada. Enxuguei a boca com o dorso da mão. A dor voltou mais forte.
No hospital, enquanto minha mulher falava com a atendente, fui correndo ao sanitário. A dor estava insuportável. Vontade de mijar e fazer cocô, as duas vontades ao mesmo tempo. Folguei a calça com cuidado, abaixei um pouco a cueca e tirei o monte de papel ensopado de urina. Sentei-me no vaso e tentei primeiro mijar, mas a cabeça de minha pica estava doendo e o canal ardia muito. Levantei-me, pois não conseguiria mijar sentado, feito mulher. Apoiei a mão esquerda na parede em frente e com a direita segurei o pau. O coitado estava mole, muito mole. Tentei um primeiro jato, com cuidado. Senti a urina passar rasgando o canal. Mesmo assim continuei forçando e mijando, até que a vontade passasse. Senti que parei de urinar, mas a vontade continuava. Olhei para baixo e vi o vaso vermelho de sangue. Talvez agora eu fizesse cocô. Sentei-me no vaso e apertei a barriga com as mãos, na tentativa de segurar a dor. Dobrei-me todo, sentado no vaso, mas a posição me pareceu propícia para vomitar. Oh, como seria bom vomitar tudo e expulsar a dor de vez! Mas não tinha mais nada para vomitar, apenas a vontade. Como não conseguia fazer mais nada, levantei-me, desenrolei um monte de papel higiênico, deixei-o no formato de absorvente e coloquei-o sob os ovos e o pau. Ajeitei a roupa e saí.
– A dor passou? perguntou minha mulher.
– Não.
– Você tem que dizer que está se mijando sem controle; diga que a dor continua; que não é normal ficar se mijando; diga que não pode ir à faculdade, porque está se mijando; que ele veja o que está errado. Diga-lhe tudo, ouviu?
Não disse nada à minha mulher, só queria que o médico me atendesse logo e me pusesse para dormir. E, quando eu acordasse, estivesse sem nenhuma dor. Mas nem o médico me atendia nem a dor passava. Isso levou mais de uma hora, quando, até que enfim, chamaram meu nome.
– Então, o que está sentindo? o médico, que não era doutor Araújo que havia me operado, perguntou, simpático.
– Faz três dias que estou urinando sem controle. Ontem mesmo, na faculdade, foi um horror, toda hora no banheiro, para colocar papel. Eu acho que isso não é...
Olhando meu prontuário, ele falou:
– Você colocou o duplo J. Não era para isso estar acontecendo. Você não mexeu, puxou o cordão?
Eu havia tirado uma pedra do rim direito. Para isto, doutor Araújo achou melhor “pescá-la” – esse foi o termo que ele deu para a operação – através de uma sonda colocada no canal urinário, depois colocaria um aparelhinho chamado “duplo J” e depois era só puxá-lo com o cordãozinho que estava com a ponta para o lado de fora.
– Não senhor, doutor, mas a enfermeira, quando eu ainda estava aqui no quarto do hospital, sentou-se na beira da cama e não viu que se sentou em cima da sonda, deve ter mexido o aparelho lá dentro. Ardeu como quê. Deve ser por isso que estou me mijando.
– É, o aparelho deve ter saído do lugar, disse o médico.
Após ter constatado que o duplo J havia mesmo saído do lugar, o doutor disse que iria tentar posicioná-lo.
– Onde está doutor Araújo, perguntei-lhe.
– Não se preocupe, ele respondeu, o procedimento é simples. E me explicou: vamos tentar colocar a sonda e...
– Sem anestesia? perguntei-lhe, já apavorado.
– Não. Não. Vamos aplicar um tubo de Xilocaína no canal urinário e tentar colocar o duplo J no lugar.
“Um tubo de Xilocaína!”, pensei, apavorado
– E eu vou continuar me urinando?
– Não. Não. Tudo volta ao normal. Entre naquela salinha e tire a roupa. Vista o roupão com a parte aberta para a frente.
Deitei-me na cama. O médico e mais dois novatos que nem ele, examinavam-me o pau, meio perdidos, sem saber ao certo o que fazer.
Eu deveria ter saído correndo, gritado por socorro, deveria ter agredido aqueles filhos da puta que queriam estuprar o meu pau. Mas não, eu só queria me ver livre da dor, eu só queria parar de me urinar sem controle. Por isso não resisti e consenti que eles me violassem daquela forma.
O meu corpo nu, entregue. Senti o líquido frio penetrar-me. Cerrei os lábios. Eu não sabia se sentia dor. Eu sentia uma coisa maior que dor. Eu me senti violado, agredido física e moralmente. Depois senti uma coisa dura sendo enfiada. Era a sonda, um tubo grosso, grosso demais para o canal de uma pica. Não disse nada, apenas cerrei os lábios e suportei a invasão.
– Pronto, disse o médico, não ia adiantar colocar o duplo J no lugar. Retiramos.
Eles não sabiam o que fazer! concluí na hora, mas nada lhes disse a esse respeito. Eu só queria sair dali. E foi o que eu fiz.
Mas antes, ainda na recepção do hospital, abracei minha mulher e, sem que pudesse me controlar, chorei muito, e muito e tão alto a ponto de uma senhora que estava perto aproximar-se e perguntar à minha mulher:
– Ele perdeu alguém?

               A aula de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt
               
               Ofereço este conto a Gerana Damulakis, 
               Ângela Vilma e a Bípede Falante.