domingo, 5 de setembro de 2010

Operação duplo J

Eu disse, pare o carro, quero vomitar.
Minha mulher parou o carro, abri a porta rápido e vomitei na rua.
– Pronto, agora podemos ir, eu lhe disse.
– O queixo está melado.
Logo adiante ela parou o carro de novo e vomitei.
– Aguenta chegar até o hospital, agora?
Não lhe respondi nada. Enxuguei a boca com o dorso da mão. A dor voltou mais forte.
No hospital, enquanto minha mulher falava com a atendente, fui correndo ao sanitário. A dor estava insuportável. Vontade de mijar e fazer cocô, as duas vontades ao mesmo tempo. Folguei a calça com cuidado, abaixei um pouco a cueca e tirei o monte de papel ensopado de urina. Sentei-me no vaso e tentei primeiro mijar, mas a cabeça de minha pica estava doendo e o canal ardia muito. Levantei-me, pois não conseguiria mijar sentado, feito mulher. Apoiei a mão esquerda na parede em frente e com a direita segurei o pau. O coitado estava mole, muito mole. Tentei um primeiro jato, com cuidado. Senti a urina passar rasgando o canal. Mesmo assim continuei forçando e mijando, até que a vontade passasse. Senti que parei de urinar, mas a vontade continuava. Olhei para baixo e vi o vaso vermelho de sangue. Talvez agora eu fizesse cocô. Sentei-me no vaso e apertei a barriga com as mãos, na tentativa de segurar a dor. Dobrei-me todo, sentado no vaso, mas a posição me pareceu propícia para vomitar. Oh, como seria bom vomitar tudo e expulsar a dor de vez! Mas não tinha mais nada para vomitar, apenas a vontade. Como não conseguia fazer mais nada, levantei-me, desenrolei um monte de papel higiênico, deixei-o no formato de absorvente e coloquei-o sob os ovos e o pau. Ajeitei a roupa e saí.
– A dor passou? perguntou minha mulher.
– Não.
– Você tem que dizer que está se mijando sem controle; diga que a dor continua; que não é normal ficar se mijando; diga que não pode ir à faculdade, porque está se mijando; que ele veja o que está errado. Diga-lhe tudo, ouviu?
Não disse nada à minha mulher, só queria que o médico me atendesse logo e me pusesse para dormir. E, quando eu acordasse, estivesse sem nenhuma dor. Mas nem o médico me atendia nem a dor passava. Isso levou mais de uma hora, quando, até que enfim, chamaram meu nome.
– Então, o que está sentindo? o médico, que não era doutor Araújo que havia me operado, perguntou, simpático.
– Faz três dias que estou urinando sem controle. Ontem mesmo, na faculdade, foi um horror, toda hora no banheiro, para colocar papel. Eu acho que isso não é...
Olhando meu prontuário, ele falou:
– Você colocou o duplo J. Não era para isso estar acontecendo. Você não mexeu, puxou o cordão?
Eu havia tirado uma pedra do rim direito. Para isto, doutor Araújo achou melhor “pescá-la” – esse foi o termo que ele deu para a operação – através de uma sonda colocada no canal urinário, depois colocaria um aparelhinho chamado “duplo J” e depois era só puxá-lo com o cordãozinho que estava com a ponta para o lado de fora.
– Não senhor, doutor, mas a enfermeira, quando eu ainda estava aqui no quarto do hospital, sentou-se na beira da cama e não viu que se sentou em cima da sonda, deve ter mexido o aparelho lá dentro. Ardeu como quê. Deve ser por isso que estou me mijando.
– É, o aparelho deve ter saído do lugar, disse o médico.
Após ter constatado que o duplo J havia mesmo saído do lugar, o doutor disse que iria tentar posicioná-lo.
– Onde está doutor Araújo, perguntei-lhe.
– Não se preocupe, ele respondeu, o procedimento é simples. E me explicou: vamos tentar colocar a sonda e...
– Sem anestesia? perguntei-lhe, já apavorado.
– Não. Não. Vamos aplicar um tubo de Xilocaína no canal urinário e tentar colocar o duplo J no lugar.
“Um tubo de Xilocaína!”, pensei, apavorado
– E eu vou continuar me urinando?
– Não. Não. Tudo volta ao normal. Entre naquela salinha e tire a roupa. Vista o roupão com a parte aberta para a frente.
Deitei-me na cama. O médico e mais dois novatos que nem ele, examinavam-me o pau, meio perdidos, sem saber ao certo o que fazer.
Eu deveria ter saído correndo, gritado por socorro, deveria ter agredido aqueles filhos da puta que queriam estuprar o meu pau. Mas não, eu só queria me ver livre da dor, eu só queria parar de me urinar sem controle. Por isso não resisti e consenti que eles me violassem daquela forma.
O meu corpo nu, entregue. Senti o líquido frio penetrar-me. Cerrei os lábios. Eu não sabia se sentia dor. Eu sentia uma coisa maior que dor. Eu me senti violado, agredido física e moralmente. Depois senti uma coisa dura sendo enfiada. Era a sonda, um tubo grosso, grosso demais para o canal de uma pica. Não disse nada, apenas cerrei os lábios e suportei a invasão.
– Pronto, disse o médico, não ia adiantar colocar o duplo J no lugar. Retiramos.
Eles não sabiam o que fazer! concluí na hora, mas nada lhes disse a esse respeito. Eu só queria sair dali. E foi o que eu fiz.
Mas antes, ainda na recepção do hospital, abracei minha mulher e, sem que pudesse me controlar, chorei muito, e muito e tão alto a ponto de uma senhora que estava perto aproximar-se e perguntar à minha mulher:
– Ele perdeu alguém?

               A aula de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt
               
               Ofereço este conto a Gerana Damulakis, 
               Ângela Vilma e a Bípede Falante.

6 comentários:

  1. Nossa, que realismo; na verdade, neo-naturalismo. Super bem escrito e pleno da essência da dor. Fiquei com vontade de chorar no final.
    Se GD sou eu ( e é, creio não ser pretensão minha), agradeço imensamente.
    Vou ficar com o conto na cabeça.

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  2. Bárbaro! A crueza o enriquece, dá a devida carne a esse pau que sangra e se desespera em dor e solidão, porque não conheço nenhum processo que seja tão íntimo e solitário quanto adoecer.
    bjs.
    BF
    P.S. Entra uma hora dessas no Contos Marginais.
    http://contosmarginais-ged.blogspot.com/
    Se você quiser participar como colaborador, me avisa que envio a permissão.

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  3. Também achei muito bom, de uma força imagética incrível, de um realismo desconcertante.
    Fico feliz pelo presente, muitíssimo agradecida.
    Um abraço.

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  4. Foi o conto mais naturalista que eu li nos últimos 44 anos. Tão naturalista, que parece que aconteceu com o narrador de verdade. Adorei.

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  5. Muito bela a composição de seu conto! Muito realista! Parabéns!

    Abs.

    Rebeca Alcântara

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  6. Não gostei. O tom neo-naturalista é batido demais nas letras tupiniquins. Acho que vc choveu no molhado.

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